“Escrevivências” de uma Mulher Negra, Mãe e Pesquisadora

Nesta semana da consciência negra, a professora Ana Lúcia Silva da Universidade Estadual de Maringá compartilha um artigo sobre a educação antirracista.  Mulher negra, mãe de um casal de filhos, professora Lúcia ensina que a consciência negra se aprende em casa.

A CONSCIÊNCIA NEGRA E A EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA COMEÇAM EM CASA: “ESCREVIVÊNCIAS” DE UMA MULHER NEGRA, MÃE E PESQUISADORA

Ana Lúcia da Silva[1]

 

É preciso ensinar para os(as) nossos(as) filhos(as), nossos(as) alunos(as) e para as novas gerações que algumas diferenças construídas na cultura e a nas relações de poder foram, aos poucos, recebendo uma interpretação social e política que as enxerga como inferioridade.

[...] [S]e queremos lutar contra o racismo, precisamos re-educar a nós mesmos, às nossas famílias, às escolas, às (aos) profissionais da educação, e à sociedade como um todo. Para isso, precisamos estudar, realizar pesquisas e compreender mais sobre a história da África e da cultura afro-brasileira e aprender a nos orgulhar da marcante, significante e respeitável ancestralidade africana no Brasil, compreendendo como esta se faz presente na vida e na história de negros, índios, brancos e amarelos brasileiros.

Nilma Lino Gomes (2005, p. 49)

A consciência negra e a Educação antirracista podem começar em casa, na família, e posteriormente, em outros espaços da vida social como na escola, nos movimentos sociais, como no Movimento Negro, na Academia, nas escolas de samba, etc. Assim, nós poderemos aprender a nos orgulhar de nossa ancestralidade africana e afro-brasileira, da identidade negra.

Desde criança, em minha família, meus pais falavam que eu e meus irmãos tínhamos que estudar, não termos vergonha e/ou sermos “bichos do mato”, “ser alguém na vida”.  Essa era a maneira deles nos ensinarem para termos orgulho de nossa cor, de sermos negros e estudar.

Minha mãe, Aparecida Alves da Silva, mulher negra, trabalhou vários anos como empregada doméstica. Ela desfilava como baiana na escola de samba “Coração Verde” aqui em Maringá – PR, celebrando a cultura popular negra no Sul do Brasil. Na atualidade, não há mais carnaval de rua em nossa cidade com desfiles de escolas de samba.  Meu pai, José Captuleio da Silva (in memoriam), trabalhou como ensacador, era sindicalista e foi um dos primeiros vereadores negros da cidade Canção, na década de 1970. Meus pais trabalharam muito para criar e estudar as duas filhas e o filho, dando essas lições de vida, mesmo não tendo muito estudo.

Isso mesmo, meus passos, “nossos passos vêm de longe”. Eu cresci, estudei e estudo, e passei a compreender o que diziam meus pais desde criança, principalmente, quando conheci a História do Movimento Negro, o Movimento União e Consciência Negra de Maringá, a luta de combate ao racismo, em prol de uma Educação antirracista.

No Brasil, principalmente, desde os anos de 1970, tempos da Ditadura militar, na data de “20 de novembro” de cada ano, os ativistas negros celebram  o “Dia da Consciência Negra”. Essa data foi escolhida para celebrar a História do povo negro no Brasil, as lutas e resistências em prol da liberdade, dando visibilidade ao herói negro Zumbi do quilombo de Palmares, que foi assassinado, em 20 de novembro de 1695, no período da colonização portuguesa na América.

Em nosso país, por conta das lutas, reivindicações e conquistas do Movimento Negro, que pressionou o Estado brasileiro para o estabelecimento de políticas públicas de combate ao racismo, com a Constituição de 1988 se estabeleceu que racismo é crime e inafiançável, tipificado no Código Penal vigente como injúria racial.

Depois de mais de um século e alguns anos de luta do Movimento Negro em nosso país, nesse início do século XXI, no governo do presidente Lula, em 09 de janeiro de 2003, aprovou-se a Lei n. 10.639, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da História da África e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino públicas e privadas, incluindo a data “20 de novembro” - “Dia da Consciência Negra” no calendário escolar. Posteriormente, com a Lei n. 11.645/2008 se estabeleceu a obrigatoriedade do estudo da História africana, cultura afro-brasileira e indígena.

A História da África, do povo negro no Brasil, a cultura afro-brasileira, eu gosto de estudar, pesquisar e lecionar na universidade, como também ensinar para minha filha Vitória de Souza Pinto, a Vivi, com 12 anos de idade, e meu filho, Inácio Captuleio de Souza Pinto, o Inacinho, 14 anos, os amores de minha vida.

Tal como meus pais, eu ensino para meus filhos a importância de estudar, de ter conhecimentos. Além disso, falo para eles que são lindos, filhos de um pai branco, descendente de alemães, e de uma mãe negra, com ancestrais oriundos da África, ou seja, do povo que foi trazido à força para América e escravizado no Brasil por mais de trezentos anos.  Negros e negras que quando conquistaram sua liberdade em 1888, tiveram que lutar por sua cidadania e combater o racismo. Racismo que ainda existe em nossa sociedade.

Amo ser mãe de Vivi e Inacinho, brincar com eles, andar de bicicleta, viajar (quando podemos) e contar histórias de nosso povo, do povo negro no Brasil. Durante os anos de Doutorado em Educação (2015 - 2018), no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE), na Universidade Estadual de Maringá (UEM), minha filha e meu filho sempre estiveram comigo e me acompanharam.

No Doutorado em Educação, eu pesquisei sobre as possibilidades do ensino de História da África e cultura afro-brasileira, de repensar a História do povo negro no Brasil a partir da análise de sambas-enredo, de escolas de sambas do Grupo Especial. do Carnaval carioca. Assim, também passei a contar Histórias com samba para minha filha e meu filho, ensinando que das lutas e resistências do povo negro no Brasil, de semba na África, principalmente, no Congo e em Angola, no Brasil se fez samba.

Contei para meus filhos que até as primeiras décadas do século passado, os sambistas ou bambas (em sua maioria negros) eram vistos como “malandros”, “vadios” e perseguidos pela polícia. Hoje, sambar não dá cadeia, mas antes dava. 

Nesses caminhos da vida, vivências e “escrevivências”[1], entre casa, família, filhos, estudo e trabalho, em 24 de agosto de 2018, ocorreu a defesa da tese de Doutorado em Educação: “Pedagogias culturais nos sambas-enredo do carnaval carioca (2000 - 2003): a História da África e cultura afro-brasileira”. Como eu fiquei feliz, meus amores estavam lá comigo, minha família e amigos.

Na UEM, registros do dia da defesa da tese de Doutorado em Educação

Fotografias. Defesa de tese de Doutorado em Educação, PPE, UEM. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2018).

Depois, de tantas lutas e resistências para estudar, trabalhar e cuidar da família, ir ao Rio de Janeiro para pesquisar e visitar o Museu do Samba, no carnaval carioca de 2018, e concluir o Doutorado em Educação, no ano seguinte eu regressei a cidade carioca.

No carnaval de 2019, na cidade do Rio de Janeiro, fui celebrar o fim de meu Doutorado em Educação com o povo negro e do samba, a Estação Primeira de Mangueira, minha inspiração para estudar a música, o samba no ensino de História. Foi uma experiência incrível desfilar na Sapucaí e cantar “História para ninar gente grande” com meu povo. Depois disso tudo, eu retornei a Maringá - PR, para seguir a vida, e no novembro negro, ocorreu o lançamento de meu livro Ensino de História da África e cultura afro-brasileira: Estudos Culturais e sambas-enredo (2019).

No Festival Afro-brasileiro de Maringá: lançamento do livro

Fonte: Fotografia com meus filhos: Vitória e Inácio Captuleio, e Cleuza Teodoro, da Gerência de Promoção da Igualdade Racial, da Prefeitura Municipal de Maringá – PR. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2019).

E como uma amante do samba, professora e mãe, no carnaval de 2020, viajei com meus filhos para o RJ, eles voaram comigo (a primeira vez deles). No sábado de carnaval nós fomos a Mangueira, ao Museu do Samba, para buscarmos as nossas fantasias, sendo recepcionados com feijoada e roda de samba.

Na Mangueira, no Museu do Samba, com meus amores

Fotografia. No Museu do Samba, com meus filhos: Vitória e Inácio Captuleio. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2020)

 

No Museu do Samba com Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e Dona Zica

Fotografia. Vitória e Inácio Captuleio, com Nilcemar Nogueira, fundadora do Centro Cultural Cartola, atualmente Museu do Samba. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2020)

 

Domingo de carnaval, o grande dia chegou. Vivi e Inacinho, meus filhos desfilaram comigo na Sapucaí, com o enredo e samba-enredo “A verdade voz fará livre”. E partimos para a Sapucaí...

Carnaval carioca 2020: partimos para a Sapucaí desfilar

Fotografia. Do hotel para a Sapucaí. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2020)

 

 A Verde Rosa, com o enredo “A verdade vos fará livre”, sob coordenação do carnavalesco Leandro Vieira, por meio da Arte carnavalesca, fez uma releitura da biografia de Jesus Cristo no Brasil contemporâneo, apresentando o “Jesus da gente” no morro da Mangueira, na favela, convivendo com grupos sociais oprimidos, como pobres, negros, mulheres, entre outros. Assim, mais uma vez, pude dialogar com meus filhos sobre a História de nosso povo.

Enfim, foi uma vivência incrível e maravilhosa desfilar com meus filhos e a Mangueira na Sapucaí. Meu coração bateu forte de emoção e alegria, pois meus amores estavam comigo sambando, celebrando a vida com o povo negro e do samba cantando: “Eu sou da Estação Primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ moleque pelintra no Buraco Quente/ Seu nome é Jesus da gente [...]” (MANGUEIRA, 2020).

No RJ, carnaval 2020, na Sapucaí, na concentração

Fotografia. Com meus filhos aguardando o desfile com a Mangueira. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2020)

 

 Assim, nessa viagem ao RJ, eu apresentei aos meus filhos o que a mamãe pesquisou, estudou, escreveu e escreve, e também ama, a História africana e cultura afro-brasileira, as lutas e resistências do povo negro, das mulheres negras no Brasil.

E nesses tempos da pandemia de COVID-19, que saudade de viajar. E em um dia desses pandêmicos, chamei meus filhos para verem as notícias de jornal na TV sobre: o assassinato do homem negro George Floyd nos Estados Unidos, por conta da violência racial de um policial branco que se ajoelhou no pescoço dele, asfixiando e levando a óbito; e os protestos e ativismo do movimento social Black Lives Matter ou “Vidas Negras Importam” nos EUA, no Brasil e no mundo, denunciando os assassinatos do povo negro, o racismo, a violência racial e policial, contestando as heranças do colonialismo.

 Assim, nesse contexto histórico da pandemia de COVID-19, lembrei meus filhos o que a Mangueira fez no carnaval de 2020, ao acessar o YouTube e mostrar partes do desfile da Sapucaí, que nós participamos.  A Verde Rosa com samba denunciou a violência racial e policial em relação ao povo negro no Brasil, principalmente, na “Comissão de Frente”, onde “Jesus da gente” foi apresentado ao lado de 12 jovens negros (os apóstolos), pobres, periféricos, ao som de funk, sendo alvos de uma batida policial. Na alegoria (carro alegórico) “O calvário”, a Mangueira apresentou o “Jesus da gente” crucificado na contemporaneidade, representado na face de um jovem negro, com cabelo platinado, pobre e corpo baleado. O samba denunciou o genocídio do povo negro em nosso país, e mais uma vez, pude dialogar com meus filhos sobre a História de nossa gente e que “vidas negras importam”.

Tempos de pandemia em casa: meus amores black power com a Vó Cida

Fotografia: Em Maringá – PR, em nossa casa. Arquivo familiar da autora: Ana Lúcia da Silva (2020)

 

Assim, pode-se ressaltar que a consciência negra é uma construção social ao longo de nossas vidas, lutas, resistências, vivências e “escrevivências”. Essa é a História dessa mulher negra, mãe solo, pesquisadora, historiadora e professora que ama demais seus filhos, Vivi e Inacinho, gosta estudar, pesquisar, lecionar e sambar pela vida.

Salve Zumbi, Dandara, homens e mulheres negros que lutaram pela liberdade! Salve o povo negro, as mulheres de todas as cores, as mulheres negras! Enfim, salve o povo brasileiro, todos aqueles e aquelas que lutam pelo combate ao racismo estrutural e cotidiano, comprometidos com a Educação antirracista e o diálogo interseccional gênero, raça e classe, considerando a diversidade sexual.

Referências

BRASIL. Lei n. 11.645/2008 sobre a obrigatoriedade do ensino de História africana, afro-brasileira e indígenas nas instituições públicas e privadas no Brasil.

BRASIL. Lei n. Lei n. 10.639/ 2003, sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África e cultura afro-brasileira, e a inclusão da data “20 de novembro” - “Dia Nacional da Consciência Negra” no calendário escolar.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

GOMES, Nilma Lino. O movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei federal n. 10.639/2003. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 39 - 62 (Coleção Educação para todos)

MANGUEIRA. Carnaval 2020. Enredo “A verdade vos fará livre” sob coordenação do carnavalesco Leandro Vieira, samba-enredo composto por  Manu da Costa e Luiz Carlos Máximo, com interpretação de Marquinho Art’Samba. In: Ensaio Geral, Informativo Oficial da LIESA. Rio de Janeiro: LIESA, 2020. p.  16 - 17.

MUNANGA, kabengele. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2016.

 

SILVA, Ana Lúcia.  Por uma Educação antirracista e decolonial, o ensino de História com música e literatura na escola: o samba canta Conceição Evaristo. DICKMANN, Ivo. DICKMANN, Ivanio (orgs.). In: Educação Brasil II . v. III, Chapecó, SC: Livrologia, 2020. p. 26 - 44. E-book disponível: https://drive.google.com/file/d/1R2cHHpvWWPrpHZvv1PN0XmRN84CHiI5g/view?usp=drivesdk

SILVA, Ana Lúcia. Ensino de História da África e cultura afro-brasileira: Estudos Culturais e sambas-enredo. Curitiba: Editora Appris, 2019.

SILVA, Ana Lúcia. Pedagogias culturais nos sambas-enredo do carnaval carioca (2000 – 2013): a História da África e cultura afro-brasileira. 264 f. Dissertação. (Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: Dra. Teresa Kazuko Teruya. Maringá, 2018.

 

[1] Escrevivência é um termo que foi criado pela escritora negra Conceição Evaristo, uma das referências da literatura negra, afro-brasileira em nosso país. Para Evaristo, escrita e vivência caminham juntas. Escrevivências fazem alusão à escrita de vivências ou experiências do povo negro, das mulheres negras no Brasil, no contexto da diáspora africana (SILVA, 2020; EVARISTO, 2016; EVARISTO, 2017;).

 

[1] Doutora em Educação (2018), linha de pesquisa: “Ensino, aprendizagem e formação de professores,  pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Doutoranda em História, linha de pesquisa: “História política”, pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPH). Professora adjunta do Departamento de História - DHI - UEM. Integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq: “Estudos Culturais, Mídia e Educação, do projeto de extensão da UEM FM 106, 9 “No contexto do samba”, do Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques e do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar Lélia Gonzalez. Nas redes sociais: Analu.historiadora

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